Morreu Vítor Fortes, o pintor da solidão

Morreu Vítor Fortes, o pintor da solidão
Conheceu de muito perto o que é a solidão e fez dela tema de muitas das suas obras e exposições. Talvez por isso, tenha escolhido morrer sozinho, anónimo e silenciosamente. Foi encontrado morto, pelas autoridades policiais, em fevereiro deste ano, no seu apartamento na Póvoa de Santo Adrião. Antes, diz quem sabe, Vítor Fortes, tinha sido uma figura da arte portuguesa do final do século XX, era reconhecido pelos seus pares e tinha obra feita. Mas escolheu ‘desaparecer’ e apagar o seu rasto junto de amigos, galeristas ou conhecidos. Nos últimos 40 anos, eclipsou-se e tornou-se um mistério. Doou todo o seu espólio à Caritas Diocesana de Lisboa, que é agora guardiã desta enigmática história e de uma obra que deve ser resgatada para completar um dos capítulos da arte portuguesa contemporânea.
Nasceu no Funchal no dia 11 de junho de 1943, mas a sua biografia é feita, sobretudo, da obra artística que deixou e pelos estudos nas Artes Plásticas. Bolseiro da Fundação Gulbenkian, entre 1969 e 1971, frequentou a Slade School, em Londres e trabalhou em Paris, com uma bolsa da mesma fundação. Fez diversas exposições individuais em Portugal e participou em múltiplas exposições coletivas, em diversas partes do Mundo, do Japão ao Brasil, passando por cidades como Paris, Londres, Barcelona ou Nova Iorque.
“Muito cerebral, na vida e na obra”, é assim que o descreve Arlete de Brito, responsável da Galeria 111, que trabalhou com o artista durante décadas. “Era reconhecido pelos seus pares e o seu trabalho teve destaque”, confirma a galerista, que perdeu o rasto de Vitor Fortes no início dos anos 80, sem até hoje perceber o motivo deste súbito desaparecimento. “A última devolução de trabalhos foi a 16 de novembro de 1983, segundo os registos da Galeria”, afirma.
Antes deste intencional apagão para o mundo que o rodeava e que marcou o final da vida do artista, Vitor Fortes foi uma presença ativa no mundo artístico da sua época. Expôs na Gulbenkian, em Paris, e executou um baixo relevo para o edifício sede da Fundação. Privou com muitos dos artistas portugueses, entre eles Alice Jorge ou Eduardo Nery, Cargaleiro ou António Inverno. As suas exposições mereceram críticas muito favoráveis, pela pena de João Miguel Fernandes Jorge, Egídio Alves ou Sousa Neves. E a sua obra mereceu reconhecimento internacional, com os prémios Internacional de Gravura, da X Bienal de São Paulo, a ‘Palette D’Or’ do Festival Internacional de Pintura de Cagnes ou o galardão “Ville de Liége”, atribuído, em 1969, na I Bienal de Liége.
Em 1972, numa exposição organizada na Galeria 111, em Lisboa e na Zen, no Porto, Vitor Fortes aventurou-se na passagem da gravura para a pintura. E escreveu Fernando Pernes sobre esta nova fase artística: “O repúdio de qualquer compromisso de ordem sentimental, psicológica ou imediatamente simbólica era, então, legível na obra de Vitor Fortes como gravador. (…) Apenas que, da gravura para a pintura, Vitor Fortes acresceu à clareza da realidade gráfica e da harmonia matemática, algo duma densidade encantatória, expressa no sentido de envolvimento luminoso que dos seus quadros se desprende”.
A sua obra rejeitou sempre a arte figurativa e sublinha a geometria, o rigor da forma e a simetria. “Com Fortes, encontramo-nos em presença duma pintura que é, simultaneamente, a representação duma ideia, a análise levada ao extremo dos mecanismos desta representação, a visualização plástica duma semiologia e a reflexão clara e cortante sobre o funcionamento conceptual e perceptivo da imagem”, escreveu Álvaro Egídio.
Numa “linguagem muito rigorosa, muito clara, bastante enriquecedora”, como descrevia Egídio, Vitor Fortes tentou criar “projetos para miragem e/ou exercícios sobre o exercício da solidão” e foi assim mesmo que chamou a uma das muitas exposições que realizou. Trabalhar a solidão. Ou experimentá-la, literalmente, até ao fim. Foi isso que fez Vitor Fortes. Na verdade, ele escolheu a solidão. Escolheu morrer sozinho. Mas, na verdade, na morte não há mesmo outra possibilidade de escolha.
A Cáritas Diocesana de Lisboa agradece a generosidade de Vitor Fortes e recebe como missão continuar o olhar de beleza e atenção sobre a solidão.
